Não se pode falar em estruturas de concreto no Brasil sem citar o nome do engenheiro civil Paulo Helene. O professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo é a referência no assunto no país. Em entrevista ao Diario, ele analisou os problemas da construção civil em Pernambuco, uma realidade que conhece de perto. Helene participou da elaboração de relatórios sobre casos que macularam o setor no estado, como a queda do edifício Areia Branca. Também fez parte da comissão técnica responsável pela requalificação da Ponte Paulo Guerra, principal acesso à Zona Sul do Recife. Para o pesquisador e consultor, o litoral pernambucano possui peculiaridades que desafiam a engenharia: solo desfavorável, atmosfera salina e a reação álcali-agregado, a maior ameaça para as estruturas de concreto. Mas todas essas adversidades podem ser contidas e controladas. Afinal, a engenharia sempre encontra os caminhos que levam à solução. Para ele, os episódios que ocorreram aqui foram frutos de erros de engenharia e não culpa do ambiente. Apesar disso, reconheceu que conseguimos tirar lições dos nossos erros. E, pelas palavras do próprio mestre, com sabedoria. “Esses acidentes fizeram com que a engenharia civil do Recife se tornasse a mais desenvolvida do país atualmente”.
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Paulo Roberto do Lago Helene tem 62 anos e formou-se em engenharia civil pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), onde construiu boa parte de sua carreira acadêmica. Tem doutorado em engenharia pela USP e pós-doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Também é especialista em patología de las construcciones, pelo Instituto Eduardo Torroja, na Espanha
Orientou 27 teses de doutorado e 42 de mestrado e continua orientando mestrandos e doutorandos, tendo ministrado cursos de pós-graduação “stricto sensu” em quatro programas nacionais e um na Argentina
Foi o consultor do concreto de alto desempenho utilizado no edifício mais alto do Brasil, o Centro Enpresarial Nações Unidas, em São Paulo, e de diversas entidades e empresas nacionais. É autor de mais de 100 trabalhos e artigos técnico-científicos publicados em congressos nacionais e internacionais e revistas especializadas
É autor e co-autor de oito livros publicados no exterior, três livros publicados no Brasil e tradutor de outros três livros. Recebeu diversos títulos, prêmios e honrarias nacionais e internacionais
“A engenharia do Recife é a mais desenvolvida do país”
O Recife tem sido palco de episódios recentes de edificações que tombaram ou que foram interditadas por não oferecer segurança a seus usuários. O senhor teve oportunidade de conhecer de perto nossa realidade. Quais são, de fato, nossos pontos fracos? Que erros estamos repetindo para fazer com que esses problemas sejam tão frequentes?
É preciso tratar os casos isoladamente. Nos prédios tipo caixão, houve efetivamente uma superestimativa da capacidade de resistência do prédio em relação ao solo. Então, todos eles estão com problemas. Tem um relatório extenso sobre isso e existe até um programa de recuperação e reforço desses edifícios, a maioria edificações populares cuja estrutura principal é de alvenaria e a fundação é de sapata rasa apoiada diretamente no solo. Isso é realmente grave, é um problema social porque são edifícios populares que precisam de um diagnóstico e de um projeto de recuperação.
Quando o senhor fala que houve uma superestimativa, o que quer dizer?
A estrutura colocada sobre o solo é como um barco sobre a água. O barco precisa ter um casco adequado para suportar o peso que vai ser colocado em cima dele, para ter estabilidade. A mesma coisa acontece com o edifício. Ele é colocado em cima do terreno: ou ele é colocado com estacas, com profundidade, com uma estrutura muito mais segura, ou ele é colocado sobre fundações diretas, que a gente chama de sapata que acompanha a direção das paredes. Então foi um erro de engenharia, claramente um erro de engenharia. Acharam que o solo da região poderia resistir e não resistiu. É claro que era possível construir, porque, não existe solo ruim para a engenharia, mas desde que uma solução mais segura fosse adotada.
Além dos prédios tipo caixão, tivemos e temos tido problemas com edificações que seguiram outros modelos construtivos. O mais emblemático pode ter sido o Areia Branca…
O Areia Branca foi um problema de concretagem mal feita dos pilares da fundação. Aí houve uma corrosão e se criou esse problema. O que ocorre é que deficiências de projetos e de execução muitas vezes não têm consequências imediatas, elas podem demorar dez, 15 ou 30 anos para aparecer. Se não tiver havendo uma inspeção adequada das fundações durante o seu uso, elas podem piorar e entrar em colapso.
Existe algum problema característico da nossa região que justifique parte desses problemas nas edificações?
Acho que o problema é de engenharia e de poder público, que não está exigindo competências e cuidados das construtoras. Vocês sabem dos problemas que existem aí. Não é um solo favorável, é próximo ao mar e tem atmosfera salina, que são problemas típicos de cidades costeiras. O que falta é engenharia, ou seja, se sabe que tem essa agressividade ambiental, tem que fazer melhor. Isso vale, inclusive, para as habitações populares, cujos os recursos são parcos. Se o estado não intervir exigindo as soluções corretas para essas edificações, pode correr o risco de as empresas não fazerem porque elas querem que seja viável construir e vender e acabam sendo temerárias.
Não podemos então generalizar os nossos problemas colocando a culpa na cidade, no solo e no clima, não é isso?
O problema é que colocaram vocês numa posição de cidade mais complicada do Brasil. Não é verdade. Vocês estão na costa, têm atmosfera salina, solo desfavorável e a reação álcali-agregado, que é algo bem mais particular, mas hoje quem vai construir daqui para frente já sabe de tudo isso, sabe evitar os problemas e conhece as soluções. A engenharia já deu as soluções. Elas precisam apenas serem implementadas pelas construtoras ou obrigadas pelo estado.
O quanto a reação álcali-agregado, que é uma peculiaridade típica do solo do nosso litoral, pode prejudicar uma estrutura de concreto?
A construção civil usa areia, rocha e brita da região, que são os agregados. Esses agregados são reativos. Eles reagem com o cimento que, em presença de água, o agente mais agressivo que existe, além do cloreto, fica umedecido e, como o agregado é reativo, começa a haver expansões. A Ponte Paulo Guerra sofreu com isso. É como se fosse um bolo que recebeu muito fermento: ele pode se separar em pedaços. Numa edificação, isso representa as fissuras. Essa reação leva até 30 anos para acontecer. Graças a Deus, até agora nenhum edifício desmoronou por isso porque essa reação é lenta e pode ser contida. Existem soluções paliativas para as obras que têm esse problema. É uma doença crônica que os moradores de um edifício vão ter que corrigir. Não tem remédio definitivo. É como um comprimido que tem que ser tomado todos os dias. Mas, nas obras novas, já conseguimos fazer com que não tenha nenhuma reação álcali-agregado. Por sorte, os materiais não são caros e, aliados ao conhecimento técnico, conseguimos obter bons resultados.
Um remédio que precisa ser tomado todos os dias, na minha leitura, significa vistorias e manutenções contínuas. O senhor acredita que não temos essa cultura ou ela está se criando após os episódios frustrantes que tivemos?
Ela está se criando. A engenharia do Recife hoje é a mais desenvolvida do país por conta desses acidentes. A Ademi e o Sinduscon que movem a engenharia local estão muito conscientes, têm preocupações e conhecimentos até maiores que em outros locais justamente porque padeceram em algum momento da história. Por exemplo, essa questão da reação álcali-agregado, tem como se colocar sensores dentro das estruturas que informam, por meio de um computador no escritório, o que está aocntecendo lá dentro. É um monitoramento feito sem precisar ficar rasgando a parede. Quando aparecer um problema, os sensores são instalados. Aí é possível fechar tudo e ficar monitorando de fora. Para se ter uma ideia, as construtoras do Recife que estão vindo para São Paulo estão com preocupações técnicas bem mais evoluídas do que as empresas locais. Elas estão muito conscientes da qualidade dessas construções, tanto é que estão um passo à frente das demais do Brasil.
Fonte: Diário de Pernambuco